terça-feira, 23 de julho de 2024

O Genocídio e Etnocídio Indígena ao Longo da História

Antes de começarmos, é importante definir o que é genocídio e o que é etnocídio. Genocídio é o extermínio deliberado de uma coletividade, seja ela uma comunidade, um grupo étnico-racial, um grupo religioso, dentre outros. O genocídio envolve a eliminação física dos membros dessa coletividade, em partes ou totalmente. Os Aimorés, indígenas comumente conhecidos como Botocudos, habitavam a região de Ilhéus, na Bahia, e o estado do Espírito Santo. Eles foram extintos dada a violência do massacre imposto pelos colonizadores europeus aos povos originários. O etnocídio, por sua vez, é a eliminação da cultura de uma coletividade. É a forma de extinguir simbolicamente o grupo, sem a destruição física de seus membros. Por muito tempo, as línguas indígenas foram proibidas no Brasil, o que fez com que, atualmente, muitos grupos não falem mais sua língua original, como os Tupinikins do Espírito Santo. Isso é o resultado da tentativa da destruição da cultura indígena em nosso país.

Fonte da imagem: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

A colonização do continente americano, no geral, e do Brasil, em particular, estava inserido no projeto de expansão comercial europeia. A intenção era estender o domínio das potências europeias, em busca de recursos naturais e mercados consumidores, no processo de consolidação e de expansão do capitalismo. Vale lembrar que, nos séculos XV e XVI, a Europa vivia a fase do capitalismo comercial. As colônias eram espaços em que se produziam mercadorias para serem vendidas nas metrópoles. Nesse contexto, tanto o genocídio quanto o etnocídio foram armas usadas pelos colonizadores em seu projeto expansionista.

Fonte da imagem: Segredos do Mundo

A colonização do Brasil combinou a ação do Estado português, da Igreja Católica e da iniciativa privada. As terras invadidas e conquistadas no “novo mundo” passaram a pertencer ao Estado português e vieram a ser exploradas por homens de negócios, com autorização da coroa lusitana. A Igreja apoiou a colonização porque era do seu interesse expandir a fé católica, por meio da catequização dos povos nativos, e angariar o dízimo dos novos empreendimentos. Os povos indígenas resistiram desde o início a esse processo e, por isso, sofreram com o genocídio e com o etnocídio praticado pelos portugueses.

Vale lembrar que existem genocídios que são lembrados e criticados e outros que são esquecidos e continuam até hoje. Nailton Pataxó, liderança do povo Pataxó Hãhãhãe, quando visitou um campo de concentração nazista na Alemanha, afirmou que sabemos quantas pessoas foram mortas no genocídio praticado pelos nazistas contra os judeus, sabemos quando essas pessoas morreram e podemos até saber seus nomes. Já em relação ao genocídio sofrido pelos povos indígenas, desde 1500, não temos essas informações e tal ato se prolonga atualmente.

O genocídio e o etnocídio praticado contra os povos indígenas do Brasil no período colonial teve como característica particular o extermínio dos homens e a absorção das mulheres. Isso aconteceu porque eram homens que vinham sozinhos para essas terras, com objetivo de explorá-las, enriquecer e voltar para Portugal, porém era projeto da Coroa Portuguesa fazer com que esses homens ficassem aqui, para defender a colônia contra invasores espanhóis, franceses, ingleses, dentre outros. Para que isso acontecesse, o Estado Português incentivou os homens que vinham para cá a formarem famílias no Brasil e se estabelecerem aqui. Acontece que, até 1551, nenhuma mulher desembarcou em terras brasileiras, o que fez com que esses homens tivessem que formar famílias com mulheres indígenas, que eram obrigadas a se casar com eles.

O genocídio e o etnocídio foram a tônica da política em relação aos povos indígenas implementada de 1500 a 1910 e, em certa medida, isso continua até hoje. Após a fase do massacre direto e da tentativa de escravização dos povos nativos, que durou de 1500 a 1549, tivemos a política dos aldeamentos, em que os jesuítas organizavam grupos indígenas em aldeias ou missões, ensinando-os a doutrina católica, a língua portuguesa e a prática comercial da agricultura, do artesanato e do pastoreio. O objetivo dos aldeamentos, declarado pela Companhia de Jesus, era a proteção dos indígenas contra a escravização que os colonos o queriam impor, mas, na realidade, por meio dessa prática, era a igreja que explorava os nativos para a produção de mercadoria, além de atuar no apagamento da sua cultura.

Fonte da imagem: Crônicas Tapuienses

Em 1570, foi outorgada a primeira lei contra a escravização dos indígenas. Essa lei trazia como exceção o que chamava de “guerra justa”, que permitia a escravização dos nativos no caso deles entrarem em conflito com os colonos, sem serem provocados por estes, como se o fato de terem suas terras invadidas não fosse motivo para conflitos. Em 1686, foi decretado o Regimento das Missões, que regularizou o trabalho missionário dos jesuítas e o fornecimento da mão de obra indígena no Estado do Maranhão e do Grão-Pará. Em 1755, foi aprovado o Diretório dos Índios, uma lei que regulou a relação entre indígenas e brancos no Brasil, proibiu definitivamente a escravização indígena, proibiu o uso das línguas nativas, impôs aos indígenas o uso de sobrenomes portugueses e os obrigou a construir casas nos padrões europeus e a trabalhar e pagar o dízimo, dentre outras medidas.

Em 1758, um ano antes da expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias, os aldeamentos indígenas passaram para a administração estatal, foi decretada a abolição da escravidão indígena e os nativos passaram a ser considerados como vassalos da Coroa Portuguesa, tais quais os portugueses. Em 1798, o Diretório foi abolido e, em 1845, já no período nosso período imperial, seus objetivos foram reafirmados pelo Regulamento das Missões, que levou ao Estado Brasileiro o controle das terras indígenas e ratificou a necessidade de assimilação dos “índios” à sociedade brasileira, a partir da catequização e da civilização, por meio das quais os indígenas deveriam ser introduzidos ao mundo do trabalho.

Em 1910, a República Brasileira criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em um contexto de acirramento dos conflitos com os povos nativos, em virtude da abertura de diversas frentes de expansão da sociedade ocidental/capitalista para o interior, avançando sobre terras indígenas. O SPI tinha como objetivo a proteção e a integração dos indígenas à sociedade brasileira, bem como a criação de colônias agrícolas, com o uso da mão de obra encontrada durante as expedições oficiais realizadas pelo órgão. O princípio por trás do SPI era que os “índios” eram seres em estado transitório, que deveriam se tornar trabalhadores rurais ou proletários urbanos. Tratava-se da visão genérica do “índio”, que seria um ser juridicamente incapaz e deveria ser tutelado pelo Estado. O SPI seguia a tradição sertanista, por atuar tal qual os bandeirantes e os missionários de outrora, por meio das expedições oficiais, que localizavam grupos indígenas no interior do Brasil, e da criação das colônias agrícolas. Nesse processo, o órgão indigenista da Primeira República distribuía presentes, vestia os indígenas e os ensinava a tocar instrumentos musicais ocidentais.

Fonte da imagem: Arquivo Nacional

Em 1939, foi criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI). A partir de então, diversos antropólogos brasileiros, como Heloísa Alberto Torres, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, contribuíram para a formulação de políticas públicas direcionadas aos povos indígenas a partir das premissas antropológicas da época e em contrariedade às práticas sertanistas do SPI. O CNPI entendia que os indígenas fatalmente se integrariam à sociedade brasileira, mas consideravam que o órgão indigenista do Estado não deveria incentivar ou promover essa integração.

A maioria dos funcionários do SPI não tinha preparo para a realização de suas funções ou não tinha compromisso com a proteção dos povos indígenas, o que fez com que o órgão produzisse resultados completamente diferentes do que aqueles a que se propunha. Eram muito comuns casos de fome, de doenças ou de escravidão dos nativos durante o período de funcionamento do SPI. Isso fez com que, em 1967, ele fosse extinto junto com o CNPI e desse lugar à Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Durante a Ditadura Militar, a FUNAI operou segundo os mesmos princípios assimilacionistas do SPI. O Estatuto do Índio, que entrou em vigor em 1973 e vige até hoje, reafirma esses princípios, ao visar a agregação dos indígenas em locais específicos, tais quais os batalhões de fronteira, os aeroportos, as colônias, os postos indígenas e as missões religiosas, e o afastamento deles de áreas de interesse estratégico, como aquelas utilizadas para a construção de estradas e hidrelétricas, para a expansão de fazendas e para a exploração de minérios.

Apesar da incompetência e da corrupção que permeava o funcionamento do SPI, seu quadro de funcionários foi transferido para a FUNAI, em seu início. Isso fez com que o novo órgão indigenista não atuasse verdadeiramente na defesa dos interesses dos povos indígenas. Como consequência, a partir na década de 1970, uma série de organizações da sociedade civil foram criadas para prestar apoio aos povos originários. Dentre elas, podemos destacar o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), e as Comissões Pró-Índio (CPI). Essas entidades foram formadas por intelectuais e religiosos realmente engajados com a causa indigenista e que se colocaram contra a perspectiva assimilacionistas e etnocida do início da FUNAI.

A partir da década de 1980, diversos grupos indígenas passaram a se mobilizar e a exigir o reconhecimento dos seus direitos e dos seus modos de vida pelo Estado Brasileiro. Esses movimentos levaram importantes demandas dos povos originários à Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988. Foi assim que nossa Constituição reconheceu o direito à diferença dos povos indígenas, contra a perspectiva assimilacionista mantida pelo Estado até então, o direito ao usufruto exclusivo dos territórios tradicionalmente ocupados por eles e a legitimidade das organizações indígenas para representar os povos originários. Com isso, apesar de continuar existindo na lei, a tutela dos povos nativos pelo Estado Brasileiro deixou de existir na prática. Foi a atuação dos movimentos indígenas que também levou a mudança no nome do órgão indigenista do Estado Brasileiro, que passou a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas, apesar dele continuar com a mesma sigla. 

Fonte da imagem: Conselho Indigenista Missionário

Com a mudança de postura dos governos brasileiros, diante da exigência cada vez maior dos povos indígenas pelo cumprimento dos seus direitos, podemos dizer que o Estado nacional deixou de cometer diretamente o genocídio e o etnocídio indígena após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Tivemos um breve retorno dessas práticas por parte do Estado durante o Governo de Jair Messias Bolsonaro, entre 2019 e 2022. Um exemplo disso foi a tragédia Yanomami, que consistiu na morte de 117 indígenas do povo Yanomami por desnutrição nesse período, provocadas pela negligência da FUNAI no cumprimento dos seus deveres durante o governo em questão.

Atualmente, genocídio indígena continua sendo praticado por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros e outros, que buscam explorar os recursos naturais das terras indígenas. Além disso, o etnocídio indígena continua acontecendo e ainda traz forte fundamentação religiosa. Existem no Brasil cerca de 40 agências missionárias ligadas a diversas denominações evangélicas, sendo a maioria delas de origem internacional, como a Jovens com uma Missão (JOCUM). Essas agências têm como objetivo a evangelização dos povos originários, a plantação de igrejas em terras indígenas e a formação de líderes nativos. Porém, o jornalista Felipe Milanez, que atuou como editor da revista Brasil Indígena, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), revelou que elas estabeleceram um mercado que “negocia as almas indígenas”, no sentido de impor aos indígenas uma submissão pela religião, para que eles aceitem a ação de garimpeiros e madeireiros em suas terras.

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