A perspectiva de Gilberto Freyre influenciou a maneira com que brasileiros e estrangeiros passaram a enxergar as relações raciais no Brasil. Ela favoreceu as conclusões segundo as quais não há racismo em nosso país, as relações entre negros e brancos são pacíficas e harmoniosas entre nós, os negros não sofrem prejuízos devido ao seu pertencimento racial e a nossa sociedade favorece a ascensão de pretos e pardos. Chamamos essas conclusões de mito da democracia racial. Apesar do autor nunca ter usado essa expressão em sua obra, ele fomentou por meio dela esse tipo de pensamento.
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Fonte da imagem: Universidade Federal Fluminense |
Um exemplo da ideologia ou do mito da democracia racial é que a primeira lei que trata da discriminação racial no Brasil, a Lei n.º 1.390/51, chamada de Afonso Arinos, tipificou como contravenção penal a negação da hospedagem em hotéis, o impedimento à entrada em estabelecimentos comerciais, a rejeição de matrícula em escola e a recusa na contratação em empresas públicas ou privadas motivadas por preconceito de raça ou cor. É considerada contravenção penal aquela ação que tem pouco caráter ofensivo e é punida mais brandamente. Tanto que a pena prevista por essa lei era o pagamento de uma multa e a prisão simples pelo período de três meses a um ano. Como a ideia corrente era a de que não havia racismo em nosso país, acreditava-se que o preconceito de raça ou cor era algo que acontecia poucas vezes e isoladamente, por isso, a Lei Afonso Arinos previa uma pena tão leve.
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Fonte da imagem: Fundação Cultural Palmares |
Casa-Grande e Senzala fez tanto sucesso fora do país, que o Brasil passou a ser visto pelo mundo como um modelo de relações raciais. Acreditava-se que países como os Estados Unidos e a África do Sul, em que a população negra sofria discriminação e segregação, ou a Alemanha, que perseguiu e matou judeus baseados na crença da sua inferioridade racial, deveriam aprender conosco a maneira pacífica e harmoniosa com que conviveriam negros e brancos por aqui. Para tanto, na década de 1950, a UNESCO patrocinou intelectuais brasileiros e estrangeiros para que realizassem uma série de estudos sobre convivência entre negros e brancos no Brasil, com o objetivo de exportar nosso modelo de relações sociais. Esses estudos, porém, concluíram que a democracia racial brasileira não passava de um mito e que existe sim racismo em nosso país.
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Fonte da imagem: Geoprofessora |
Florestan Fernandes (1920 – 1995), sociólogo paulista, foi um dos autores que participaram do projeto da UNESCO. Em 1965, ele publicou o livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes, em que desconstruiu o mito da democracia racial, desvelando o racismo e a inferiorização sofrida pelos negros no Brasil e afirmando que a inexistência de conflitos explícitos entre negros e brancos e de leis segregacionistas no país não significava harmonia nas relações raciais brasileiras.
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Fonte da imagem: Nova Escola |
Segundo Fernandes, a abolição da escravatura representou o início da construção da ordem social competitiva e democrática em nosso país. Porém, os negros foram excluídos desse processo e relegados a posições subalternas que ocupam até hoje. A inexistência de leis segregacionistas no Brasil é explicada por Fernandes pelo fato de que as elites brancas nacionais não enxergam os negros como uma ameaça a sua posição de dominação, e, por isso, não acreditavam que era necessária a elaboração de leis que os colocassem em ‘seu devido lugar’.
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Fonte da imagem: Nas Tramas de Clio |
Nos anos 1960 e 1970, inspirados nos movimentos pelos direitos civis dos negros estadunidenses, os movimentos negros brasileiros passaram a confrontar o mito da democracia racial, a denunciar o racismo e a discriminação racial no Brasil e a exigir igualdade de tratamento e de oportunidades entre negros e brancos em nosso país. Por pressão desses movimentos, foi aprovada a Lei n.º 7.716/89, chamada de Lei Caó, que define os crimes de preconceito de raça ou de cor, prescreve penas mais severas para esses crimes e os considera inafiançáveis. Ainda assim, até hoje, ninguém foi condenado pelo crime de racismo, já que a maioria dos casos denunciados são tratados pelo poder judiciário como injúria racial. A diferença é que o racismo é considerado uma ofensa contra a coletividade dos negros, enquanto a injúria racial é vista como um ato cometido contra um indivíduo e tem menor potencial ofensivo.
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Fonte da imagem: Terra |
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