A década de 1930 foi um período importante para a formação da identidade nacional. O Governo Brasileiro, sob o comando de Getúlio Vargas, trabalhou ativamente na elaboração de uma nova representação do país e na delimitação da identidade e da cultura brasileiras. Nesse contexto, Gilberto Freyre (1900 – 1987), sociólogo e antropólogo pernambucano, escreveu o livro Casa-Grande e Senzala, oferecendo uma nova interpretação da nossa história.
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Fonte da imagem: Diário de Pernambuco |
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Fonte da imagem: Antropologia Simétrica |
Em Casa-Grande e Senzala, Freyre utilizou a teoria de Boas para a interpretação do Brasil. Segundo ele, problemas nacionais que os adeptos dos determinismos geográfico e biológico atribuíam à nossa natureza, tinham causas sociais e econômicas, logo, culturais. Desse modo, a menor estatura, a fraqueza e a baixa capacidade para o trabalho dos brasileiros que os autores de antes atribuíam à miscigenação, eram provocados pela desnutrição – já que a maior parte das terras agricultáveis do país são destinadas à monocultura de exportação e produzem poucos gêneros alimentícios para nosso povo – e pelas doenças, como as verminoses – causadas pelo saneamento básico insuficiente – e a sífilis – provocada pelo comportamento sexual mais desregrado da sociedade patriarcal formada no Brasil.
Diferente das perspectivas eugênicas anteriores, Freyre via a miscigenação como algo positivo e a considerava um elemento característico da brasilidade. Para ele, mistura de raças ocorrida no Brasil teria trazido para nosso povo o que há de melhor dos brancos, dos negros e dos indígenas. Além disso, o autor valorizava as contribuições dos indígenas e, principalmente, dos negros para a formação da cultura brasileira. Porém, apesar dos avanços trazidos por sua perspectiva, Freyre cometeu alguns equívocos em sua leitura do nosso país.
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Fonte da imagem: João Neiva |
Apesar de reconhecer a violência existente na relação entre senhores e escravizados nos períodos colonial e imperial brasileiros, o antropólogo pernambucano argumentou que, na maior parte do tempo, essas relações teriam sido amenas, até mesmo doces, diferente do que aconteceu nos Estados Unidos, onde a escravidão teria sido mais violenta. É como se a convivência constante entre senhores e escravizados tivesse atenuado as relações entre eles. Isso aconteceu porque, apesar do título do seu livro ser Casa-Grande e Senzala, Freyre focalizou na sua análise a escravidão que ocorria dentro das casas-grandes, que teria sido menos violenta do que a escravidão dos negros nas lavouras e nas senzalas.
Outro acontecimento que teria atenuado as relações raciais no Brasil, de acordo com Freyre, foi o contato sexual que ocorreu entre os homens europeus e as mulheres indígenas e negras no Período Colonial. Como as mulheres brancas eram escassas em terras brasileiras nesse período, os homens colonizadores tiveram que se relacionar sexualmente com as indígenas e as negras, produzindo assim a miscigenação que nos caracterizaria. Nesse ponto, o autor romantiza o estupro das mulheres subalternizadas pelos homens europeus. Em algumas passagens de seu livro, ele escreveu que mulheres indígenas e negras teriam desejado e até mesmo se oferecido aos homens brancos, quando nós sabemos que a maioria dessas relações não eram consentidas pelas mulheres.
Gilberto Freyre, também em comparação com o que acontecia na sociedade estadunidense, afirmava que, no Brasil, as relações entre negros e brancos, após a abolição da escravatura seriam harmoniosas. Segundo ele, a oposição da sociedade estadunidense aos afro-americanos era tão ferrenha, que se manifestava na promulgação de leis segregacionistas, o que não teria acontecido no Brasil.
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Fonte da imagem: BuzzFeed |
Por fim, o autor defendia a ideia da facilidade de ascensão social de pretos e pardos em nosso país, o que seria demonstrado pelo fato de algumas crianças negras estudarem junto com as brancas nas Casas-Grandes, de existirem professores negros que davam aulas nos colégios e pelo concubinato que se estabeleceu entre algumas mulheres negras e homens brancos e ricos, relações nas quais teriam nascido alguns dos grandes nomes da nossa história e da nossa cultura, como Machado de Assis, um dos mais importantes escritores brasileiros, fundador da Academia Brasileira de Letras, e Nilo Peçanha, o primeiro negro presidente do Brasil, responsável pela criação do Sistema Federal de Escolas de Aprendizes e Artífices, que deu origem aos atuais Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
A teoria apresentada por Freyre serviu como fundamentação ideológica do projeto de construção da cultura e da identidade nacionais pelo governo de Getúlio Vargas. Foi assim que inúmeros elementos culturais africanos e afro-brasileiros foram desafricanizados e clareados, para se tornarem elementos da cultura nacional. Como exemplos, podemos citar a feijoada, que deixou de ser comida de escravizados e converteu-se em prato nacional, a capoeira e o samba, que eram criminalizados e converteram-se em esporte e música brasileiros.
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Fonte da imagem: Memorial da Democracia |
Segundo a perspectiva da existência de relações harmoniosas entre negros e brancos no Brasil, propalada por Gilberto Freyre, durante o regime varguista, as religiões de matriz africana, que até então eram perseguidas pela polícia, passaram a ser permitidas pelo Estado, Nossa Senhora Aparecida, uma santa negra, foi tornada padroeira do Brasil pela Igreja Católica, os jogadores de futebol, já em sua maioria negros, foram profissionalizados, e o dia 5 de setembro foi oficializado como o Dia da Raça Brasileira, para comemorar a tolerância racial supostamente existente em nossa sociedade. Casa-Grande e Senzala foi publicado em vários idiomas e em vários países do mundo. Ele contribuiu para a superação das teorias que entendiam a raça dentro de uma perspectiva naturalista, que defendiam a superioridade de algumas raças sobre outras e que consideravam a miscigenação como algo que traria degeneração ao povo e condenaria alguns países ao fracasso. Vale lembrar que o livro é de 1933, período em que o nazismo, que era fundamentado pelas teorias raciais e eugênicas, estava em ascensão na Europa.
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