quarta-feira, 3 de abril de 2024

Um Histórico dos Conceitos de Raça e Racismo

Os seres humanos inicialmente passaram a se organizar em grupos baseados na posse de ancestrais comuns. Como consequência, os membros de um mesmo grupo compartilhavam determinadas características físicas em comum, como a cor da pele, dos olhos e dos cabelos. Segundo Kabengele Munanga, a palavra raça surgiu no latim medieval para fazer referência a esses grupos, para os quais o principal não era a aparência física, mas a ancestralidade. Com o tempo, o conceito passou a representar a divisão dos seres humanos em grupos fisicamente contrastados, ou seja, as diferenças físicas entre as pessoas passaram a ser mais importantes do que a sua ancestralidade na delimitação dos grupos humanos.

Fonte da imagem: Ciência Hoje

Desde sempre, grupos humanos com características físicas distintas convivem entre si e, a princípio, as diferenças físicas não sinalizavam uma hierarquia entre eles. Porém, a partir do séc. XV, no contexto das Grandes Navegações e da colonização da África e das Américas, as diferenças fenotípicas passaram a ser utilizadas como elementos demarcadores da superioridade de uns grupos sobre outros. O projeto colonial europeu dependia da exploração das riquezas naturais e das populações das novas colônias. Para justificar tal exploração, incluindo com a escravização dos povos ameríndios e africanos, os colonizadores passaram a inferiorizar esses povos, tendo como base exatamente suas características físicas. Desse modo, o racismo surgiu como uma ferramenta para a inferiorização das populações das colônias, com o objetivo de explorá-las e escravizá-las.

Fonte da imagem: BBC News Brasil

No caso específico do racismo contra as populações negras africanas, tivemos uma importante atuação da Igreja Católica trazendo fundamentação religiosa. A partir da narrativa bíblica segundo a qual Cam e seus descendentes teriam sido amaldiçoados por Noé a serem escravos dos seus irmãos, a igreja legitimava a escravidão dos negros, que eram considerados descendentes de Cam. Além disso, duas bulas emitidas em 1455 pelo Papa Nicolau V, a Dum Diversas e a Romanus Pontifex, autorizavam os europeus a escravizarem povos muçulmanos e negros. Existia também, no séc. XV, a crença de que os negros não tinham alma, não sendo, portanto, seres humanos, o que permitia a sua escravização.

No séc. XIX, no contexto do imperialismo e do neocolonialismo, o conceito de raça passou por algumas transformações. Primeiramente, a fundamentação religiosa foi suplantada pela fundamentação científica. Em segundo lugar, à cor da pele, dos olhos e dos cabelos foram acrescentados o formato do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, dentre outras características físicas demarcadoras da raça. Por fim, junto com as características físicas, passaram a ser consideradas como distintivas das raças características psicológicas, morais, intelectuais e culturais. Assim, o conceito de raça passou a representar grupos humanos que compartilhavam características físicas, psicológicas, morais, intelectuais e culturais e que transmitiam essas características biologicamente aos seus descendentes. A superioridade ou a inferioridade dos grupos humanos se devia à inferioridade ou à superioridade dessas características. Isso tudo era fomentado pelas ciências naturais e sociais do período em questão.

Fonte da imagem: Curiozone

A partilha da África, da Ásia e da Oceania entre as potências industriais europeias, como a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Bélgica, foi justificada pelas ideias manifestas acima. Acreditava-se que os Europeus, por serem naturalmente superiores, podiam subjugar as populações naturalmente inferiores. Entendia-se também que essa subjugação era acompanhada pela civilização dos povos colonizados pelos europeus, que levavam para aqueles que dominavam sua cultura superior.

No séc. XX, dois acontecimentos fizeram com que o conceito de raça sofresse outra modificação. Primeiramente, os horrores da Segunda Guerra Mundial, que foi fomentada pela ideia de que os povos germânicos pertenciam a uma raça superior e que, por isso, podiam dominar e até mesmo eliminar povos de raças inferiores, como os judeus, levaram o mundo a questionar o conceito da maneira que ele era apresentado. Em segundo lugar, descobertas científicas invalidaram o conceito de raça enquanto uma realidade biológica. Podemos destacar quatro dessas descobertas: 1) 0 fato de que os traços físicos tidos como demarcadores das raças, como a cor da pele, a textura do cabelo e o formato do nariz dependem mais de questões ambientais, como a maior ou menor incidência dos raios ultravioletas e a temperatura do ar que é respirado, do que de determinações biológicas imutáveis; 2) o fato de que pessoas de uma mesma raça podem ter traços genéticos diferentes; 3) o fato de que os seres humanos de raças diferentes não possuem variabilidade genética suficiente a ponto de se tornarem grupos estanques, como acontece entre os animais; 4) o fato de que os seres transmitem características físicas aos seus descendentes, mas não características psicológicas, morais, intelectuais e culturais.

Diante disso, o conceito de raça da forma que era utilizado anteriormente foi invalidado pela ciência. Ainda assim, categorias raciais continuam a ser utilizadas para a classificação hierárquica dos seres humanos. Isso levou à substituição do sentido biologizante da raça pelo sentido sociológico do conceito. Nesse novo sentido, o conceito de raça representa a posição que a sociedade atribui aos sujeitos tendo como base as características físicas manifestas por eles. Assim, indivíduos com características físicas mais próximas dos negros escravizados ocupam posições inferiores no interior da sociedade, enquanto sujeitos com características físicas mais próximas dos brancos colonizadores ocupam posições superiores no seio da sociedade. Isso não se deve à natureza dos indivíduos, mas à leitura que a sociedade faz das suas características físicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Mais Visitadas