RIBEIRO,
Darcy. O Novo Mundo. In: ______. O Povo Brasileiro: A Formação e o
Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 26-70. |
I. O Novo Mundo
1. Matrizes Étnicas
A Ilha Brasil
Mapas europeus de 1300 mostravam a crença na existência de uma Ilha Brasil, localizada no Atlântico Norte. Darcy Ribeiro traz esse título para a primeira seção desse capítulo para indicar a existência anterior do Brasil à colonização e à descoberta do pau-brasil pelos portugueses.
![]() |
Fonte da imagem: Imagens Históricas |
Por milênios, a costa atlântica brasileira foi habitada por diversos povos indígenas, que disputavam nichos ecológicos e migravam constantemente pelo território. Há séculos, o grupo tupi se fez dominador nessa costa e em parte do interior, subindo por rios como o Amazonas, o Paraguai, o Guaporé e o Tapajós.
Os povos tupi não se organizavam como uma nação, mas como uma grande quantidade de tribos que falavam línguas de um tronco comum ou dialetos de uma mesma língua. Quando cresciam, essas tribos se dividiam, se diferenciavam e se hostilizavam.
O contato com os europeus interrompeu o desenvolvimento autônomo dos povos indígenas. Sua agressividade e destrutividade foi terrível, especialmente a partir da contaminação dos povos indígenas com doenças até então inexistentes aqui.
O conflito entre portugueses indígenas ocorreu em três níveis: 1) o biótico, manifestado na guerra bacteriológica, com as doenças trazidas pelos europeus; 2) o ecológico, manifestado na dominação dos territórios indígenas e nos seus usos para outros fins; 3) nível econômico e social, manifestado na escravização dos nativos e na “mercantilização das relações de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de gêneros exóticos, cativos e ouros” (p. 27).
Esse contato conflituoso gestou uma nova etnia, a partir da unificação linguística e cultural de povos indígenas afastados de seus modos de vida tradicionais, africanos escravizados e europeus.
A Matriz Tupi
No momento da chegada dos portugueses, o Tupi era o principal grupo indígena existente no Brasil. Os Tupi ainda estavam desalojando grupos anteriores dos territórios que conquistaram. Eram aproximadamente um milhão de pessoas, formando vários grupos tribais, cada qual com várias aldeias que tinham entre 300 e duas mil pessoas.
![]() |
Fonte da imagem: Visite o Brasil |
Os Tupi praticavam a agricultura, domesticando diversas plantas, como a mandioca, que se não for tratada adequadamente, é uma planta venenosa por possuir grande quantidade de ácido cianídrico. Milho, feijão, amendoim, algodão, abacaxi, caju e outras plantas eram cultivadas em roçados na mata feitos a partir da derrubada das árvores com machados de pedra e da limpeza do terreno com fogo.
A agricultura garantia a fartura de comida e de outras matérias primas, como o algodão, o ano todo. Os Tupi completavam sua alimentação com a caça e a pesca, que lhes dava abundância de proteína animal em alguns meses e escassez em outros.
Por isso, era importante a ocupação de locais com caça e pesca abundantes, que possibilitavam a manutenção de aldeias maiores, que podiam abrigar até três mil pessoas. Eram aldeias agrícolas indiferenciadas, em que todos participavam da produção de alimentos, com a exceção de líderes religiosos (pajés e caraíbas) e chefes guerreiros (tuxauas).
Mesmo considerados uma macroetnia, devido à sua unidade linguística e cultural, os Tupi não se unificaram “numa organização política que lhes permitisse agir conjugadamente”. Na medida em que cresciam, os grupos Tupi se dividiam, se afastavam, se diferenciavam e se tornavam hostis (p.29).
No conflito com os colonizadores, os Tupi formavam confederações regionais, que eram desfeitas assim que o combate terminava. Um exemplo foi a Confederação dos Tamoios, formada pelos Tupinambá do Rio de Janeiro, pelos Carijó do planalto paulista e pelos Goitacá e Aimoré da Serra do Mar. A Confederação dos Tamoios apoiou os invasores franceses na Bahia de Guanabara contra os colonizadores portugueses, que se aliaram aos grupos indígenas rivais dos Tupi, como os Temiminó.
Muitas guerras foram travadas entre os indígenas e os portugueses, fazendo com que os colonizadores precisassem se esforçar por décadas para efetivamente dominar o território brasileiro.
Os Tupi possuíam uma estrutura social igualitária, sem a divisão em camadas superiores e inferiores. Isso fez com que eles não organizassem elites que pudessem ser cooptadas ou um Estado que pudesse ser dominado pelos colonizadores, daí a violência dos portugueses contra os nativos. Após cada batalha, seja contra os colonizadores, seja contra outros grupos indígenas, caso saíssem vencedores, os Tupi faziam prisioneiros para os rituais de antropofagia. Caso saíssem perdedores, eles fugiam para se recuperar, se organizar e atacar novamente. Quando ficavam sem condições de defesa e ataque, “os sobreviventes fugiam para além das fronteiras da civilização” (p.30).
Os Tupi viviam em estado de guerra contra grupos rivais que expulsavam dos territórios que conquistavam ou entre si mesmos. As guerras contra os rivais se deviam à disputa por melhores locais para a agricultura, a caça e a pesca. A guerra entre os grupos Tupi acontecia para a captura preferencial de prisioneiros para os rituais de antropofagia.
Como esses rituais tinham grande importância cultural para os indígenas desse grupo étnico, eles eram quase sempre feitos com outros Tupi, pois eles aceitavam seu destino e interpretavam o personagem do “guerreiro altivo, que dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iam devorá-lo” (p. 31).
A Lusitanidade
Os indígenas possuíam uma sociedade horizontal, integrada à natureza e com economia de subsistência. Já os portugueses tinham uma sociedade de classes, urbana e com economia comercial. O centro desta era Lisboa, onde o Conselho Ultramarino, formado pela nobreza lusitana e nomeado pelo rei, controlava todo o empreendimento colonial português.
A Igreja Católica era outro segmento de destaque, com seu Tribunal do Santo Ofício, que realizava o controle moral da sociedade portuguesa. A burguesia lusitana, constituída desde que Lisboa era entreposto comercial de rotas que ligavam o Mar Mediterrâneo ao Mar do Norte, também foi um ator importante no empreendimento colonial português.
Nesse processo, Portugal se via pressionado pela Espanha, que intentava absorvê-lo, pela Inglaterra e pela Holanda, que com ele concorriam no comércio mundial e disputavam por colônias, e pela Igreja Católica, que dava legitimidade ao empreendimento, mas exigia se fazer presente, com vistas à expansão da cristandade católica.
O poderio português vinha do desenvolvimento do comércio, das tecnologias de navegação introduzidas na Península Ibérica pelos mouros, como a bússola e o astrolábio, bem como da tipografia de Gutemberg, que popularizou os livros no país, e do domínio da metalurgia. Contribuiu para isso também o fato de Portugal ter sido o primeiro país europeu a se unificar e se constituir como Estado nacional, com o movimento da Reconquista.
![]() |
Fonte da imagem: Mar sem Fim |
Portugal desenvolveu uma ciência náutica a partir da prática da navegação. Essa ciência era colocada em prática, a serviço da ‘descoberta de novas terras’ e da sua introdução no sistema mundial governado pela Europa. O objetivo oculto era a exploração dos recursos naturais e humanos das colônias para a geração de riqueza para a metrópole, primeiro, com a comercialização daquilo que era encontrado pelos colonizadores, como o pau-brasil, depois, com a produção de mercadorias vendidas na Europa, como o açúcar.
A expansão marítima e comercial europeia veio do “processo civilizatório” iniciado com a Reconquista, por meio da qual Portugal e Espanha se unificaram e se constituíram como Estados nacionais, após os mouros, africanos de cultura e religião islâmica, dominarem o sul da Europa por 700 anos. A motivação declarada dessa expansão era religiosa: a propagação do catolicismo e a unificação dos seres humanos sob uma única cristandade, cindida pela Reforma Protestante (p. 35).
Antes do “achamento do Brasil”, ainda no processo de contorno do continente africano para a criação de uma nova rota para as Índias, onde se buscavam mercadorias, o Vaticano publicou uma bula chamada Romanus Pontifex, que regulava o empreendimento colonial, reconhecia a primazia de Portugal nesse processo e autorizava a invasão e a conquista de territórios de povos não cristãos, o saque de seus bens e a sua escravização (p. 35).
Após a unificação da Espanha e do seu lançamento nas grandes navegações, a Igreja publicou a bula Inter Coetera, nos mesmos termos da anterior, reconhecendo a participação do Estado castelhano e dividindo o ‘novo mundo’ entre Portugal e Espanha, garantindo a eles o direito de conquistá-lo e de escravizar sua população, o que era visto como uma forma missão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário